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CRÔNICA DA MADRUGADA


 

                                              Crônica da Madrugada

 

A madrugada tem um silêncio peculiar. Não é um silêncio absoluto, mas um murmúrio constante de coisas que quase não existem: o vento que desliza entre as folhas das árvores, o zumbido monótono de um poste de luz, o eco distante de um motor que corta a noite. A cidade dorme, mas nunca completamente. 

Num banco de praça de uma rua, um homem escreve. Ele está ali todas as noites, um fantasma do próprio cotidiano. Entre uma xícara de café esfriando e um caderno surrado, ele compõe suas histórias, rabiscando memórias e sonhos com a precisão de quem sabe que o amanhecer virá rápido demais. 

As ruas ao redor parecem congeladas no tempo. O asfalto ainda reflete a chuva que caiu horas antes, e as luzes douradas dos postes criam pequenas poças de brilho sobre a escuridão molhada. Aqui, cada detalhe ganha vida: o estalar de um galho, o piscar intermitente de uma janela distante. 

Há algo na madrugada que transforma o comum em poesia. Talvez seja o contraste com o dia, esse gigante barulhento que rouba nossa atenção. À noite, a cidade sussurra seus segredos, e quem ousa ouvi-los descobre mundos que se escondem na pressa do sol. 

O homem sentado no banco de praça da rua sabe disso. Ele escreve porque é na madrugada que ele encontra a si mesmo. As palavras fluem mais leves, como se o peso do mundo dormisse com o resto da cidade. Ele escreve sobre o que vê, mas também sobre o que imagina: o casal que trocou promessas sob aquele mesmo poste, o gato que desliza pelas sombras como se fosse feito delas, os sonhos que alguém deixou escapar pela janela entreaberta. 

Quando o céu começa a tingir-se de um azul pálido, ele fecha o caderno. Sua crônica está pronta, mas a madrugada ainda pulsa em suas veias. Ele se levanta, ajeita o casaco, e segue para casa, enquanto a cidade acorda lentamente, sem saber das histórias que se escreveram enquanto ela dormia. 

Naquele banco de praça de rua, no entanto, fica algo: o eco suave de uma noite que se transformou em palavras, como uma promessa de que a madrugada, com toda a sua magia, voltará. E com ela, o escritor.


Chagas Barros

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